Capa de Raven, álbum da Kelela.
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Review: Ana Frango Elétrico – Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua

Um mosaico de cores e sensações é apresentado ao ouvinte. Cada pedaço deste vitral exerce sua função de maneira autônoma, podendo ser apreciado de forma independente. Entretanto, ao afastar-se desse mosaico, é possível apreciar um vitral que se forma grande, robusto e belo, com cada cor complementando harmonicamente o quadro desta imagem. Este é um possível retrato do álbum Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua (2023, RISCO) de Ana Frango Elétrico, uma das figuras mais proeminentes da nova MPB. Inicialmente ganhando destaque por suas cativantes canções do álbum Mormaço Queima (2018) e solidificando sua presença com o aclamado Little Electric Chicken Heart (2019), Ana demonstra, sem sombra de dúvidas, que, seja no palco ou na produção – como evidenciado pelo vencedor do Grammy Latino SIM SIM SIM, de Bala Desejo ou no delicioso Baby Blue, de Julia Branco; cada trabalho entregue é, no mínimo, excepcionalmente polido e refinado.

Continuando a pesquisa apresentada em seu trabalho anterior, o novo álbum brinca com o imediatismo do pop e mistura gêneros já conhecidos por aqueles que acompanham a carreira de Ana, como jazz, bossa-nova e samba. É interessante notar que, no meio de tantas influências musicais, a sonoridade oitentista permanece sólida, sem se tornar um saudosismo datado. No entanto, a nostalgia está presente, mas não ofusca o brilho e a inovação que permeiam o álbum.

A primeira faixa do álbum, “Electric Fish”, estabelece um clima de discoteca pop; a linha de baixo convida à dança, enquanto a guitarra em tons brilhantes, uma característica marcante do novo registro, acompanha uma voz que, curiosamente, soa doce e áspera ao mesmo tempo. A letra toma forma como um pequeno conto narrado pelo eu lírico, e apesar da língua adotada, é compreensível. O ritmo envolvente e as descrições luxuriosas transportam o ouvinte para ambientes iluminados por luzes artificiais, festas particulares e outras imagens que variam de acordo com a imaginação.

Indo mais fundo, é possível criar cenários para a maioria das faixas apresentadas. Com instrumentos de sopro, violinos e uma voz que lembra ronronados, a suave “Camelo Azul” evoca a sensação de estar em uma animação romântica ou desfrutar de um momento de relaxamento em um dia de folga, como aqueles preguiçosos domingos na companhia de alguém amado. Longe de ser uma faixa que a hetero-cisnormatividade possa se apropriar, o eu lírico explora questões de gênero, como declarado em versos como “Seu cheiro me lembra meu lado feminino / mas hoje sou menino”. Isso está de acordo com a “estranheza” ortográfica que o título do álbum confere. É gratificante para o ouvinte curioso descobrir que Ana atua como intérprete em algumas faixas do álbum, como a mencionada, originalmente composta por Vítor Conduru.

Foto: Divulgação

“Insista Em Mim”, uma composição original de Fainguelernt, é uma das faixas mais emotivas do álbum. Com tons frios, que refletem a capa do single, a música passa da descrição impessoal de um amor para um apelo: “Pegue o que quiser de mim / Me plante agora em seu jardim / E se eu murchar, me regue / Insista em mim”. A faixa explora influências da música brasileira, em particular a melancolia presente na soul music dos anos setenta de Tim Maia. Conforme a melodia cresce, Ana revela elementos únicos de sua pesquisa, uma mistura de décadas que se entrelaçam para criar uma teia sonora contemporânea.

Se no álbum anterior Ana se afastou da composição, agora ela se destaca como intérprete. Letras como “Camelo Azul” e “Dela” (part. rapper JOCA e coescrita com Pedro Amparo) parecem ter brotado diretamente da mente de Ana. Isso é particularmente significativo para pessoas queer, que encontram suas experiências de amor e sexualidade refletidas nas letras, tornando-as um fenômeno universal dentro da comunidade.

A segunda metade do álbum, de forma um pouco abrupta, mas previsível, apresenta três faixas mais eletrônicas: “Let’s Go To Before Again”, “Debaixo do Pano” e “Dr. Sabe Tudo”, sendo as duas últimas interpretações de Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo e Rubinho Jacobina. Neste ponto, o ouvinte é confrontado com uma experiência auditiva que pode ser desconhecida até então, mas que ainda mantém elementos previamente introduzidos, como a bateria eletrônica de “Coisa Maluca” (coescrita com Vovê Bebê). A versão da música do grupo de Sophia Chablau pode parecer estranha devido ao ritmo um pouco quebrado e à ausência das guitarras cintilantes que marcaram todo o percurso do álbum. No entanto, a regravação da faixa final sinaliza o retorno de símbolos presentes no início do registro. Isso funciona como uma conclusão de ciclo e um aceno ao trabalho anterior, que tinha uma abordagem um pouco mais experimental do que o presente álbum.

Por fim, é importante destacar que Ana Frango Elétrico demonstra total domínio sobre o processo criativo. Mesmo ao apresentar uma variedade de influências e estilos, o trabalho mantém uma originalidade que o torna fluido e agradável de se ouvir. Além da sonoridade única, o álbum cria uma conexão profunda com o público LGBTQ+ ao oferecer a oportunidade de compartilhar experiências românticas e sexuais transformadas em poesia por meio das músicas de Ana Frango Elétrico.

Capa de Raven, álbum da Kelela.

Ana Frango Elétrico – Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua

Lançamento: 20 de outubro de 2023
Gravadora: RISCO, Mr Bongo, Think! Records
Gênero: Pop, pop rock, MPB
Produção: Ana Frango Elétrico

Faixas:
01. Electric Fish
02. Dela (participação JOCA)
03. Nuvem Vermelha
04. Coisa Maluca
05. Boy Of Stranger Things
06. Camelo Azul
07. Insista Em Mim
08. Let’s Go To Before Again
09. Debaixo Do Pano
10. Dr. Sabe Tudo