Costumo dizer que o hip-hop é especial por ser muito mais do que um estilo de manifestação artística; olhando exclusivamente para a música através do rap/DJing, podemos dizer que esse é um gênero que é voltado para a manifestação do indivíduo, que reivindica o seu lugar na sociedade que muitas vezes é apagado. Essa manifestação ocorre pela reafirmação da sua raça, cultura, e claro, de sua fé. E é justamente esse último ponto que resolvi destacar.
Poucos, ou talvez nenhum estilo musical tenha uma relação tão intensa, única e até mesmo confusa com a fé quanto o rap. Digo isso porque a fé no rap é abordada sob várias perspectivas, não apenas na diferença de crenças que são a base para as canções, como também sobre o próprio conceito de fé que alguns rappers exploram. Kanye West e Kendrick Lamar, por exemplo, são dois rappers que frequentemente falam de Deus de formas completamente diferentes. Aqui no Brasil, isso não é diferente.
Mas afinal, por que a fé é tão essencial no rap? E como ela se relaciona tanto no rap nacional quanto nos EUA, de onde o estilo é originado?
A fé como representante das classes populares
Antes de viajar pelas origens do rap no exterior, é interessante entender o porquê a fé é um personagem tão considerável para o gênero aqui no Brasil.
Se você já ouviu artistas como o Racionais Mc’s, Sabotage, BK, Djonga ou Emicida, já sabe que a fé é um tópico frequente em suas obras, mesmo que implícita. Ainda que outros estilos da música brasileira explorem o tema, poucos oferecem tanto nesse sentido quanto o rap. Para buscar uma explicação, devemos olhar para o contexto histórico além da arte.
Desde a época do Brasil Colônia, a integração político-religiosa do Estado fez com que a religiosidade (em especial através do Cristianismo) ganhasse força nas classes mais pobres. Ao mesmo tempo, a vinda de escravos (que faziam parte dessas classes) da África fez com que outras manifestações religiosas também se fortalecessem por aqui.
Com isso, durante toda a história do país, a religiosidade foi um fator importante para a arte. Autores como Mário de Andrade, Ariano Suassuna e a própria Literatura de cordel inseriram a fé como um aspecto significativo para as suas obras, mesmo que de olhares diferentes. Fato é que a arte reflete um traço da sociedade brasileira: a religião é uma entidade essencial. Pense em O Auto da Compadecida, por exemplo, que leva esse tópico para o centro do enredo. Aliás, citando essa obra de Suassuna, fica claro como a fé é um fator preponderante para quem vive na pobreza.
Pensando nas origens do rap no Brasil, ele é impulsionado justamente para dar voz a essa classe. Durante todo os anos 80, grupos de periferia se reuniam em diversos locais da região central de São Paulo. Muitos dos frequentadores das apresentações que aconteciam nesses locais eram pretos e pobres.
Grupos de fora e especialmente o Public Enemy, que se apresentou no Brasil ainda em 1984, também colaboraram com a popularização e nascimento do rap vindo de regiões negligenciadas pelo estado.
Visualizando essas origens e a questão da religião ser um aspecto importante para a população mais pobre, foi quase natural a “apropriação” da fé pelo movimento hip-hop no país.
A pluralidade da fé no rap nacional
No começo desse texto, eu disse como o hip-hop é uma maneira de dar voz e reivindicar o seu lugar. O rap é um ambiente plural, onde todos são bem-vindos. E a forma como o discurso religioso aparece no gênero, ao menos aqui no Brasil, exemplifica isso de maneira única.
A música gospel, por exemplo, tem no rap um de seus grandes representantes. Nomes como Ao Cubo, Pregador Luo e Apocalipse XVI não são populares apenas com evangélicos, como na própria cena do hip-hop nacional.
Mas, muito mais do que se manifestar de diferentes maneiras, o rap permite que a própria fé seja vista sob diferentes óticas. Nesse caso, é impossível não pensar em Sobrevivendo no Inferno, álbum de 1997 do Racionais Mc’s e que talvez seja o maior representante dessa pluralidade e da utilização da fé no discurso do rap.
As faixas do disco evocam Deus, anjos e Orixás. Assim, vemos que uma característica do rap nacional é promover um encontro entre diversas tradições religiosas. A abertura, “Jorge da Capadócia”, começa com uma saudação à Ogum, Orixá de todos os caminhos e encruzilhadas, e que também é representado por São Jorge no catolicismo. Ao fazer referência a uma das figuras mais emblemáticas no catolicismo, religiões espíritas e afro-brasileiras, vemos a tal pluralidade que o rap promove, representada no discurso da fé.
Sobrevivendo no Inferno também é emblemático nessa questão por usar signos religiosos para representar problemas do cotidiano da periferia. O próprio nome do álbum faz alusão a um cenário ligado à religião. Canções como “Capítulo 4, Versículo 3”, também são uma boa amostra desse uso de signos religiosos, fazendo com que a fé não seja só manifestada, mas uma espécie de língua em comum para conversar com um público que tem na fé algo valoroso.
Viajando mais a frente no tempo, a expressão da fé no rap nacional se manteve. Criolo exalta a força da espiritualidade – mesmo que em sentidos não-religiosos em Convoque seu Buda (2015); Galanga Livre (2017), do Rincon Sapiência, se tornou um disco marcante e um dos melhores da década passada, e segundo o próprio rapper, teve bastante influência do islamismo, após o artista paulistano viajar ao Senegal e à Mauritânia. Emicida também é outro que já fez referência aos símbolos das religiões de matriz africana em suas letras. São nomes antigos e recentes que reforçam cada vez mais a importância de autoafirmar sua fé, seja por motivos religiosos ou não.
E nos Estados Unidos?
Nos EUA, onde o rap nasceu, é mais difícil desenhar as origens da relação entre a fé e o rap. Uma ótima alternativa de leitura é o artigo de Josef Sorett, da Oxford African American Studies Center.
O autor cita dois momentos significativos para a cultura estadunidense e para a população preta durante o final da década de 60. Artistas pretos ganharam visibilidade pós-movimento de direitos civis, enquanto a cultura cristã crescia consideravelmente, explorando as novas inovações de mídia. Assim, pessoas ligadas à igreja – majoritariamente pretos – conquistaram espaço na audiência local.
Segundo Sorett, a consequência disso foi a formação de novas práticas culturais e religiosas. Nesse universo, o hip-hop e a cultura cristã, mesmo que por muitas vezes sejam vistas como opostos, foram frutos de um mesmo fenômeno.
Aliás, segundo o autor, podemos pensar a conexão entre o hip-hop e a religião como opostos, mesmo que com frequência ambos os caminhos se cruzem. Vale dizer que essa oposição ocorre porque algumas vertentes do hip-hop são vistas negativamente sob os valores puramente cristãos.
Por outro lado, vale ressaltar que o hip-hop nasceu em uma época onde surgiram várias tradições muçulmanas dos EUA. O Sunni Islam, Nation of Islam e o Five Percent Nation são alguns dos exemplos.
Isso representa uma base sólida do hip-hop: nomes como Chuck D, Rakim, Ice Cube, Busta Rhymes, Nas, Mos Def, Lupe Fiasco e Jay Electronica já se declararam devotos ao Islã, sendo que essa devoção é refletida em sua arte.
Enfim, assim como no Brasil, o hip-hop dos EUA é plural nesse sentido; mais do que expressar sua fé, as figuras sagradas são utilizadas de diferentes formas, algo que veremos que é ainda mais latente hoje.
A fé e o rap moderno
Assim como no Brasil, a forma como a fé é expressada varia não apenas de crença para crença, mas de artista para artista. E as últimas décadas serviram para que isso fosse apresentado de diversas maneiras.
Ainda em 2004, Kanye West – que recentemente lançou Jesus Is King, álbum totalmente gospel – lançou The College Dropout, disco com influências da música gospel. Mais que isso, “Jesus Walks” questionava o porquê as rádios e o próprio hip-hop “rejeitavam” Deus.
“They say you can rap about anything except for Jesus/That means guns, sex, lies, videotape/But if I talk about God my record won’t get played, huh?”.
Ou seja, um homem que valorizava o conceito religioso da fé. Aliás, Kanye provavelmente seja o grande artista, pelo menos em alcance midíatico, que relaciona a fé e a religião. É só lembrar das apresentações do Sunday Service Choir, onde o rapper e o grupo celebravam como se estivessem em um culto/missa, e da repercussão disso.
Outro que aborda a fé de um jeito parecido é Chance the Rapper. Desde as suas mixtapes e também com sua LP de estreia, The Big Day (2019), vemos um artista que enxerga a fé como uma fonte de felicidade.
Mas como dito anteriormente, o rap é feito de pluralidade. Nesse sentido, Kendrick Lamar, talvez o maior nome do gênero nos últimos anos, já apresentou inúmeras faixas que se pautam na fé não como algo religioso, mas como uma força que o faz superar obstáculos, que o faz compreender que ele é humano e passará por apuros. Nada melhor do que o refrão de “Bitch, Don’t Kill My Vibe” para reforçar essa característica de Lamar:
“I am a sinner who’s probably gonna sin again/Lord, forgive me/Lord, forgive me/Things I don’t understand”.
O sagrado e o profano
Por fim, vale ressaltar outra característica da relação entre a fé e religião: a aproximação entre o sagrado e o profano. “Father Stretch My Hands Pt.1”, de Kanye, combina um coral de igreja com uma letra que fala sobre sexo anal. Aliás, Yeezus (2013) é uma obra que capta bem essa questão.
“Praise the Lord (Da Shine)”, colaboração entre A$AP Rocky e Skepta, exalta o lado espiritual de Rocky enquanto o mesmo fala que vai “quebrar a lei”. Voltando mais pra trás, até mesmo o maior representante do bling bling (um estilo que vai contra qualquer dogma religioso) tem seus momentos, como em “Pray to the Lord”, de Lil Wayne.
O irônico é que, mesmo com o rap cada vez mais nas rádios, a fé tem se mantido algo relevante para esses artistas; isso só confirma a ligação próxima entre um e outro (mesmo que por vezes oposta).
Então, com tudo isso que foi mostrado, podemos dizer que o rap é um gênero que, ao discutir raça e classe, utiliza da fé como um meio de justamente ressaltar uma identidade que é renegada pelo estado/sociedade. Em outras palavras, a fé é mais do que algo sagrado: ela é utilizada para discutir questões mundanas.