Pelo amor às pessoas, mas acima de tudo: pelo amor a música.
Já foi o tempo em que a gente juntava dinheiro para ir assistir apenas a um show separado de determinada banda. A grande maioria das pessoas prefere mesmo é juntar um pouco mais e gastar tudo num festival. Ainda que os fãs verdadeiros reclamem (com razão), o fato é que o Brasil aderiu aos grandes festivais e isso acaba trazendo mais fatores positivos do que negativos, no final das contas. Ao receber a terceira edição nacional do Lollapalooza, o país só reforçou a tendência dos grandes festivais dominarem o mundo: não se trata apenas da música, mas da experiência. E isso, meus amigos, show nenhum consegue superar.
Admito aqui que cogitei seriamente me livrar dos meus ingressos para o Lollapalooza. Motivos estúpidos para se perder dois shows do Muse, e ainda ver o Nine Inch Nails e o Arcade Fire. Felizmente, a ideia idiota foi embora e segui com o plano de embarcar para São Paulo e experimentar a sensação boa de pertencer a algum lugar, alguma tribo, de praticamente estar vivo, e ainda por cima reencontrar velhos amigos.
Dos vários sinais que tive para desistir da viagem, o mais irritante foi o cancelamento do show solo do Muse na quinta-feira. Arranquei cabelos e perguntei se Deus estava de sacanagem comigo.
Na companhia do meu amigo paulista Mateus, que me abrigou em SP enquanto tentava me distrair para o cachorro dele dançar “Lepo Lepo” na minha perna, meu amigo paranaense André, e meu parceiro John Pereira, encarei o primeiro dia do Lollapalooza. Era meio estranho ir a um festival solteiro, coisa que não acontecia desde o Tim Festival 2007, mas acabei descobrindo que no meio de amigos tudo é mais simples, mais fácil, mais descontrolado, desprovido de limites, e engraçado. Não que namorando fosse chato, mas são duas experiências completamente opostas, o que tornou muito fácil eleger o Lolla 2014 como o meu festival favorito – desbancando até o Rock in Rio 4, em 2011. (ambos tiveram uma coisa em comum: as bandas eram meros detalhes para a zueira sem limites).
Tudo começou com uma longa espera pelo amigo John na estação do Metrô. O meu suor denunciava a pouca quantidade de alcool ingerida momentos antes de sair de casa (nada melhor que tomar doses de Havana comendo queijo, né não?) e quem sofreu isso foi o coitado de uma loja de alianças, colares e pulseiras da estação. Até o meu celular o sujeito carregou, de tanto que azucrinamos a vida dele. Mateus queria comprar uma pulseira com a inscrição: “Lolla BFF, bitch”. As alianças também serviam para nosso propósito, mas não encontramos os números corretos. Quando o John finalmente chegou, partimos para buscar o André e almoçar no Pizza Hut de um shopping. Não aconselho a ninguém comer pizza antes de encarar um festival, mas a ideia é ser vida loka, né? E continuamos bebendo moderadamente.
Após um breve encontro com o Criolo (sim, ele mesmo), partimos para uma mais uma parte da saga até o autódromo de Interlagos: a desconfortável viagem de trem. A gente até tentou descontrair o ambiente com uma versão a capella de “Royals”, da Lorde. Um fazendo a voz mais irritante possível, e deixando as pessoas próximas ou rindo muito ou extremamente irritadas. Sei que a minha barriga estava doendo de tanto rir. Nosso humor não foi abalado nem mesmo quando alguém peidou (tem sempre um filho da puta desses) naquela sardinha humana. “Acho que precisamos apertar o botão de emergência desse trem para encontrar a pessoa que acabou de morrer aqui dentro. Socorro!”, e até os seguranças riram nesse momento.
Depois de encarar uma escada interminável (apostando corrida), nós quatro finalmente iniciamos a longa caminhada para chegar até o local do show. No meio do caminho, mais uma parada para abastecimento etílico (desta vez com Heineken). Muita gente reclamou da distância, mas a verdade é que Interlagos foi uma opção surpreendentemente boa. Fora os probleminhas para retornar no final da noite, tudo saiu perfeitamente bem – inclusive com entradas bem organizadas e com poucas filas.
Passava das 14h quando o segurança do festival vetou a entrada da nossa garrafinha carregada de cachaça. Não restou muita alternativa, virei tudo de uma vez. O segurança riu da minha cara e sacaneou: “Quer dizer que era ‘só água’, né?”. Entramos e timidamente iniciamos a maratona de selfies do final de semana com direito a uma foto no ‘S’, do Senna. Corremos para fazer o reconhecimento de território e era realmente surpreendente constatar a estrutura do evento. “Estamos no Brasil mesmo?”. Claro que faltaram detalhes básicos, como os nomes dos palcos, mas era muito improvável que alguém se perdesse ali. Após sermos apresentados ao palco Interlagos (com o show do Lucas Santtana), andamos até o palco Skol para bolar nossa estratégia para o Muse. Nisso, alguém teve a ideia de começar a brincar com todo mundo que aparecesse usando uma camiseta da banda de Matthew Bellamy. A cada vez que um “muser” aparecesse, nós quatro iniciamos nosso canto: “Olê, olê, olê, olê, Muse, Me-use”. Em 2007, 2008, era praticamente impossível encontrar fãs da banda por aqui, e sempre que acontecia rolava uma animada conversa e a certeza de um novo amigo. Hoje em dia, os fãs são bem escrotinhos e mal sabem conversar sobre as músicas antigas. Dizem que as bandas são retratos de seus fãs, e nesse caso, o Muse está muito bem representado por sua parcela de seguidores imbecis, prepotentes, egoístas etc. Se merecem.
Disseram que o Cage The Elephant quebrou tudo no palco Onix, mas eu não vi. A banda já havia sido convidada para o primeiro Lolla. O vocalista pisou na minha cabeça. Eu não precisava disso novamente. Preferimos seguir a dica do John, e conferir o Café Tacvba. Antes disso, porém, decidimos nos arriscar com a Skol. A única cerveja do festival. Por maior que fosse a insegurança, aceitamos dar uma chance para o amor e a esperança. Eles não poderiam estragar tudo com uma cerveja ruim, né? Afinal, é um evento de rock. Cervejas são importantes para a experiência. Na fila, alguém puxou “Anna Julia”, do Los Hermanos. Por algum motivo oculto, parecia divertido cantar “Foda-se a Julia” no refrão, o que passou batido para os outros três, que só perceberam depois que eu continuei gritando isso como se fosse um mantra da liberdade. As pessoas da fila riram, todo mundo riu e ficou por essa. Continuamos nosso momento com outras canções, sempre com uma ou outra modificação (fosse para fazer graça ou por não saber a original, pouco importava). Mateus comprou a cerveja dele falando em espanhol com a atendente, que começou a rir sem parar e precisou da minha ajuda.
Foi uma bela surpresa descobrir que eu conhecia o Café Tacvba da época do Little Big Planet, um game para Playstation 3. Dançamos felizes para aliviar a tristeza de constatar que Skol é Skol, não importa o lugar. A pior cerveja do mundo não servia nem para ser jogada na terra. Medo de ser acusado de crime ambiental. Preferi me envenenar lentamente com ela, mentalizando que era apenas uma Heineken quente. Apenas uma Budweiser choca. Apenas uma Brahma piorada.
No meio caminho, conhecemos duas jovens que pareciam perdidas. Muito educadamente, ou porque não tinha nada melhor para fazer já que o show do Portugal the Man ainda ia demorar para começar, acompanhamos as moças até o palco Onix. Por algum motivo inexplicável, elas queriam ver o Imagine Dragons. Na verdade, por algum motivo muito surreal, MUITA gente queria ver essa droga de banda hipster tocando. A maioria, claro, eram jovens com cara de 15 anos. Até pensei em ficar lá no show para me dar “bem” e viver a micareta, mas a soma de preguiça com “não tô a fim” me venceu. Após entregar as menininhas, partimos de volta para Interlagos para ver (ou tentar) Portugal the Man, que fez um show tão fraco que me deixou com sono. Ou isso ou a Skol trazendo algumas de suas consequências. Mateus e André não estavam a fim de ver a Lorde e estavam inclinados a perder o Nine Inch Nails para garantir um bom lugar no Muse. Eu e o John tinhamos planos opostos, e não seria possível perder a Lorde ou o Nine Inch Nails.
A moça magrela entrou no palco e demonstrou desenvoltura para conduzir o show, mas isso não significava qualidade. Ela só tinha uma música. Eu queria ouvir “Royals”, cantar com voz irritante e ir embora. E sabia que isso só aconteceria no final da apresentação. Por sorte, uma certa Marta apareceu bem na nossa frente (e a beleza dela nos fez trocar um rápido olhar adolescente de “Meu Deeeeeus!!!!”) e começamos a conversar. A Marta queria nos convencer a ficar por lá para o show do Nação Zumbi. Eu vi o John com a mão no queixo refletindo sobre isso. Ele chegou a cogitar a possibilidade, mas percebeu que NUNCA se perdoaria por fazer a troca mais insana de sua vida. Desistimos do show, trocamos contatos com a Marta (que é um amor, apesar de ter preferido o Nação Zumbi ao Trent Reznor) e partimos para a espera do show mais aguardado da noite.
Outra diferença de ver um show solteiro é que você está sozinho. Você pode simplesmente se enfiar nos lugares mais apertados, levar porrada por isso, passar mal, mas dar conta e ainda conseguir ficar quase na grade. Com mulher você não faz isso, se tiver um mínimo de bom senso e responsabilidade. A gente quer cuidar da pessoa e não jogar ela para a morte, especialmente se tratando dos fãs insanos do Nine Inch Nails. Eu e o John conseguimos, com certa dificuldade, encontrar um lugar muito bom de frente para o palco e bem perto. Parecia que ficaria tudo bem dali e tal. Assentamos na grama suja e molhada. Em silêncio, a gente esperou a hora passar. 19h55. Não chegava nunca. 19h30 durou uma eternidade. Até dar 19h40, uma nova tortura. Mas nada se comparava ao que aconteceu das 19h50 até 19h55. Deu para cantar “Faroeste Caboclo” três vezes nesse tempo. Deu para assistir metade do Titanic e ainda comprar lenços para limpar os olhos. Até que…
O barulho começou. As pessoas começaram a gritar. A iluminação surreal do palco começou a brilhar e os integrantes foram entrando um a um. Minha perna tremeu mais do que quando ouvi uma garota dizendo que, se eu dormisse conversando com ela via Skype cantaria “Across the Night”, do Silverchair para mim. Mais especificamente a parte de “I falling in love for people sleeping”. No tempo de espera, uma das poucas coisas que consegui falar com o John foi que iria pirar se começassem o show com “Wish”. E adivinha? Trent Reznor começou a porra do show com ela. Dei uma giratória gritando. Abracei o John pulando e mergulhei como uma onda no meio das pessoas que estavam na minha frente. Com alguns socos e hematomas na costela, fui parar na grade enquanto berrava todos os versos da canção. Parecia apropriado.
Ao contrário do que aconteceu em 2012, com o Foo Fighters, minha expectativa não foi frustrada. Um show especial começa já na primeira música. Aquela que vai te puxar e te fazer enlouquecer. Na ocasião, eu esperava por “Bridge Burning”, que foi substituída por “All My Life”. Seria legal, se eu já não soubesse que ficaria sem ouvir a primeira… e isso abalou o restante do show. O NiN começou do jeito que eu queria e precisava. Deixou a minha cueca em brasas, especialmente depois de “Sanctified” e “Pig”, que substituíram “Closer” como a parte sexual do show. Sozinho ali, no meio de um bando de rostos desconhecidos, só conseguia recordar das minhas antigas intenções malignas durante um show da banda. O que aconteceu foi que o NIN me exorcizou e a realidade foi muito mais inocente do que meus sonhos. Um momento intimista. De olhos fechados. Sentindo as notas, os instrumentos, a voz. Ainda que seja uma banda de sonoridade obscura e pesada, foi justamente nesse show que encontrei alívio para a alma. A catarse final, claro, foi com “Hurt”. Destruídora. Gritada por todos. A verdade sai dos olhos em forma de lágrimas e volta nossos lábios doce como o mel. Essa música é o final perfeito para a maioria das coisas da vida. Não apenas de um show.
Consegui reencontrar o John no meio da galera e corremos para pegar o Muse, ou o que quer que tenha restado da banda. O show de quinta-feira havia sido cancelado devido às condições da voz do vocalista. Vale dizer que o Muse ficou o ano inteiro sem fazer nenhum show e o cara tinha que ficar cagado de urubu justamente para o show… Depois de virar cambalhota em cima de uns pneus para cortar caminho (e no processo ficar com dor nas costas), chegamos em tempo de ver a banda iniciando o show com “New Born”. O volume estava baixo e eu precisava me aproximar o máximo possível. Infelizmente, tentei fazer isso pelo lado errado do palco e acabei me enfiando no meio de um beco sem saída, com fãs plantados como árvores. Longe demais para conseguir ver o palco, com um som fraco, e um vocalista zumbi, não demorou muito para eu ter a certeza de que aquele seria o pior show do Muse da minha vida. E tenho autoridade para falar nisso, afinal só deixei de ir no terceiro show deles durante a abertura do U2, em 2011. Bellamy tentou compensar a plateia com uma cover tosca de “Lithium”, do Nirvana, e canções que os fãs mais novos podem considerar obscuras: “Stockholm Syndrome”, “Butterflies and Hurricanes”, “Yes Please”, “Agitated” e “Bliss”. Disseram que “Muscle Museum” e “Citizen Erased” estavam no repertório. SE tivessem tocado a primeira, talvez o show tivesse conseguido ganhar uma nota maior, mas ainda medíocre. Uma pena que o Muse, com toda a sua qualidade, tenha sofrido com o acaso e oferecido um show tão abaixo do esperado. Que realmente cumpram a promessa de voltar no ano que vem.
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Fotos: I Hate Flash