Eu sempre fui um grande fã de Charlotte Gainsbourg como atriz. Seus intensos papéis, especialmente nas parcerias com o controverso diretor Lars Von Trier (Melancolia, O Anticristo, Ninfomaníaca) sempre me deixaram bastante admirado pelo seu talento. Por outro lado, eu nunca me interessei tanto pelo seu trabalho fora dos cinemas, especialmente na música. Mas isso mudou recentemente, quando parei para escutar Rest, seu quarto disco de estúdio, de 2017.
O álbum – que inclusive foi citado como um dos bons discos da última década em um dos episódios do Ouça o Que Eu Digo – me deixou encantado por alguns motivos; o principal deles é descobrir um pouco mais sobre a personalidade de Charlotte, que sempre se mostrou bastante reservada.
Um dos pontos centrais do trabalho é a morte de sua meia-irmã, Kate Barry (filha de Jane Birkin, sua mãe), que faleceu em 2013. Além disso, a relação com o icônico Serge Gainsbourg, seu pai, também é lembrada. Por outro lado, o disco trata de muitos aspectos mundanos que cercam Charlotte, especialmente o medo de envelhecer e a nostalgia pela infância. Com isso, temos um registro que, apesar de ter nascido com um olhar sobre outras pessoas, nos faz conhecer mais a cantora/atriz francesa.

Podemos somar toda essa carga emocional à excelente produção de SebastiAn, que combina a voz por vezes tímida de Charlotte com um instrumental grandioso de forma impecável, fazendo desse álbum um dos grandes atos do pop na década passada.
Tentarei falar um pouco mais sobre cada um desses aspectos.

Um tributo à Serge Gainsbourg
Para quem já pesquisou sobre a vida de Serge Gainsbourg, é fácil se deparar com situações que mostraram o quão ele era apaixonado pela sua família, isso é, Jane Birkin (paixão essa que durou mesmo após a separação dos dois), Charlotte Gainsbourg e Kate Barry, considerada como uma filha por Serge. Essa paixão também é recíproca por parte de Charlotte, visto que ela já falou várias vezes sobre em algumas entrevistas.

No caso de Rest, ela transparece especialmente na forte “Lying to You” (faixa que considero a melhor do disco). Nela, Charlotte narra seus últimos instantes com Serge ao encontrar o seu corpo (Serge morreu de um ataque cardíaco, em 1991):
“Eu toquei um rosto de cera
Que definitivamente te fez fugir
Sua perna nua esticada para fora do lençol
Sem vergonha e sangue frio
No canto de seu rosto, uma mancha
Você não teria gostado
Eu estava mentindo para você
Eu peguei esse direito, sem fé”
Mas as referências (e reverências) a Serge vão além disso. Destaque nesse sentido para a belíssima “I’m a Lie”. A faixa parece mais a recitação de um poema escrito, algo que se aproxima muito do que Serge fazia como músico. A forma como Serge influencia o trabalho é uma forma de tributo por parte de Charlotte.
Mas é importante deixar claro que essa influência não faz de Rest algo que não tenha a sua própria identidade; pelo contrário, esse orgulho que a mesma tem em ser filha de um dos maiores artistas da França é apenas um dos componentes que constituem o registro.
Kate Barry, e a celebração em meio ao luto
Apesar de Charlotte ter começado a trabalhar em Rest antes da morte da sua irmã, Kate Barry, é possível dizer que esse acontecimento teve um impacto significativo no resultado final da obra.
“Kate”, terceira canção do álbum, não é apenas uma homenagem, mas uma celebração dos momentos felizes que ambas viveram juntas. Esses dois versos resumem esses momentos:
“Nós íamos envelhecer juntas
Nosso mundo imperfeito”
A faixa-título também faz alusão a irmã de Kate, e brinca com o significado que a palavra “Rest” tem no francês (Rester significa permanecer) e no inglês (Descanso). É como se Charlotte se conformasse com o luto, mas ao mesmo tempo lutasse contra a vontade de permanecer ao lado da irmã. Aliás, sobre a faixa, vale ressaltar que ela é a única que não foi produzida por SebastiAn, mas tem a colaboração de Guy-Manuel de Homem-Christo (Daft Punk). Apesar de ter um nome ligado à cena eletrônica na produção, essa é uma das canções mais intimistas e silenciosas do disco.
Por fim, vale destacar “Les Oxiles”, música que encerra o trabalho. Nela, Charlotte narra as suas visitas ao túmulo da irmã, novamente celebrando o tempo em que passaram juntas, ressignificando o pesar trazido pelo luto.
A saudade da infância e o temor pelo presente e futuro
O tempo pode ser considerado outro personagem importante de Rest. Aliás, esse é sempre um assunto recorrente nas conversas de Charlotte com a imprensa.
A cantora já afirmou diversas vezes como teve uma ótima infância ao lado da família, pois muitos momentos dessa época foram incríveis, incluindo os trabalhos que fez quando nova, tanto na música como na atuação.
“Songbird in a Cage”, canção que foi escrita originalmente para Paul McCartney (e que tem colaboração do próprio Paul no piano), sintetiza a nostalgia de Charlotte por essa época, ao mesmo tempo que oferece um duro choque de realidade, revelando que esses tempos mágicos passaram:
“Voando pelo céu
Todos os nossos sentidos vacilando
Agora você se senta e chora
Nas sombras no teto”
A quase cantiga de ninar “Dans vos Airs” tem a mesma mensagem; contudo, Charlotte lembra da infância por meio dos olhos dos filhos, e teme pelo futuro:
“Mergulho nas feições de meus filhos adormecidos
Um reflexo de trechos pálidos e melancólicos”
“Les crocodiles” também aborda a infância de Charlotte, e vale também ser lembrada pela incrível produção de SebastiAn, que consegue explorar um instrumental grandioso, mas que ao mesmo não apaga a voz de Gainsbourg na mistura intensa de instrumentos.
Ainda explorando a questão do tempo, no álbum é possível enxergar uma Charlotte que reflete frequentemente sobre o que ainda está por vir, e que até teme pelo que pode acontecer ao envelhecer.
“Deadly Valentine”, single super dançante e que flerta com o disco e o pop dos anos 80, trata da passagem do tempo de uma perspectiva romântica. Mas esse medo é ainda mais visível em “Ring-a-Ring o’Roses”, onde Charlotte se agarra às suas “primeiras vezes”. O refrão é arrebatador, lembrando que “todos nós caímos”.

Um álbum sincero, original e uma obra-prima do pop
Algo que faz Rest ser um álbum especial é sua capacidade em ser extremamente sincero. E quando eu digo sincero, não estou apenas falando da forma como Charlotte aborda suas perdas; na realidade, o disco vai muito além, explorando todos os medos e prazeres da cantora, fazendo com que a obra seja quase uma biografia de sua vida.
Além disso, é elogiável a forma como Charlotte vai além de seus próprios limites sonoros; com Rest, vemos alguém conhecida como ser alguém mais fechada e tímida (pelo menos com sua voz) explorar uma sonoridade grandiosa e apostar em melodias mais dançantes, mesmo que o trabalho foque em assuntos pesados.
Dessa forma, o resultado disso é óbvio: um dos discos mais interessantes e originais da música pop nos últimos anos, e que reafirma Charlotte Gainsbourg como a grande artista que é.